Origem comum dos povos
Todos os povos referem o dilúvio e atribuem-lhe causas míticas, sempre diferentes. Isso prova: primeiro, que o dilúvio universal é fato incontestável. A seguir: cada povo lhe deu interpretação de acordo com as circunstâncias do meio em que vivia e do estádio de civilização em que se encontrava. Porque nenhum poderia ter achado para ele causalidade científica. Hoje, encontra-se uma. Existe analogia entre as distâncias dos planetas pertencentes ao sistema solar de que faz parte a Terra; exceto quanto à interposta entre Marte e Júpiter. Supõe-se que existiu aí outro planeta, desfeito por um cataclisma e transformando nos asteróides, mais ou menos recentemente descobertos[1]. Perdida a atração desse planeta sobre os outros, quebrou-se momentaneamente o equilíbrio universal, dando como consequência, na Terra, o dilúvio, catástrofe caracterizada pela água simplesmente porque ela constitui o elemento epidérmico dominante do nosso planeta, sendo ao mesmo tempo o mais móvel. Documentos palpitantes da grande convulsão existem em toda parte de todas as partes do mundo: bizarrias e extravagâncias chocantes ou encantadoras; defeitos de construção impossíveis de ser atribuídos ao Supremo Arquiteto sem grave ofensa; extensões compactas de continentes, tornando difícil a penetração, e enxames de ilhas e ilhotas, muito mais tratáveis se aglutinada num só conjunto.
Nem o dilúvio universal é o único fato real com explicações legendária ou mítica. Aconteceu a mesma coisa todas as vezes que os povos tiveram de explicar fenômenos impressionantes pela grandiosidade. Não explicáveis pela ciência contemporânea, tinham de sê-lo pelo sobrenatural, dele se apossando as religiões, geralmente como prova do descontentamento e do mau gênio da divindade, e só os cedendo à ciência mui tardiamente, ainda assim em troca de anátemas, de castigos inquisitoriais e excomunhões plenas. No Cristias de Platão, vemos a cólera divina submergir todo um continente – a Atlântida – por causa da magia negra, ali praticada sem medida. O bispo Tollerant refere tremor de terra que destruiu o istmo ligando a Europa à África – origem do mito das Colunas de Hércules, bem parecido com o de Monte Alverne, rachado ao meio por um terremoto, mas atribuído pela crendice ao mesmo fenômeno manifestado em Jerusalém à hora da crucificação de Jesus. (...) [2]
(Amaral, Luís. A América antes dos europeus. Biblioteca do Espírito Moderno, série 3ª. História e Biografia. Vol. 43. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1946.)