sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Mito ou lenda? Em busca do arquétipo do herói no mundo contemporâneo



Luciana Sousa, professora e atriz,

integrante do Grupo Paideia

Onde, quando e como nasce ou surge um herói? Tal pergunta atravessa os séculos, mas parece não perder sua força, que, aliás, seria um dos atributos heroicos. Além dela, que outros aspectos caracterizam esse ou aquele herói, mais ou menos humano, próximo dos deuses? Quem não teve medo do Minotauro, da Medusa, do cão Cérbero? Para cada um desses monstros, heróis valorosos lutaram e foram vitoriosos. Os tempos mudaram e novos heróis surgiram. Dos romances de capa e espada ou novelas de cavalaria aos HQs, gerações e mais gerações alimentaram medos e esperanças, idealizaram encontrar aquele ser fantástico, quem sabe até repetir-lhe o feito. Quem já não sonhou ou mesmo se fantasiou de Batman, Homem-Aranha, Super-Man, Mulher-Maravilha? Mas ainda temos heróis? Eis um breve panorama desta figura ímpar, a um só tempo, mítica, lendária e essencialmente contemporânea: o herói.

Segundo Joseph Campbell, “O herói é alguém que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo.” Seja num rito sacrificial, seja involuntário, ele (a) faz a oferta máxima, que é a de si mesmo (a), depois de cumprida a saga ou jornada de saída e regresso. O professor Junito Brandão também esclarece:

A etimologia, a origem e a estrutura ontológica de herói ainda não estão muito claras. Talvez se possa falar com certa desenvoltura acerca de "suas funções" e, assim mesmo, tomando-se como ponto de partida sobretudo a Grécia. É claro que todas as culturas primitivas e modernas tiveram e têm seus heróis, mas foi particularmente na Hélade que a "estrutura", as funções e o prestígio religioso do herói ficaram bem definidos e, como acentua Mircea Eliade, "apenas na Grécia os heróis desfrutaram um prestígio religioso considerável, alimentaram a imaginação e a reflexão, suscitaram a criatividade literária e artística”.

Etimologicamente, ‘hrwz (héros) talvez se pudesse aproximar do indo-europeu servä, da raiz ser-, de que provém o avéstico haurvaiti, "ele guarda" e o latim seruäre, "conservar, defender, guardar, velar sobre, ser útil", donde herói seria o "guardião, o defensor, o que nasceu para servir". [1]

Em síntese, o feito típico do herói que contribui para a formação de toda uma sociedade consiste na ideia de partida, realização, retorno. Uma ideia germinal, como sugere Joseph Campbell, havendo, na essência, tão-somente “um herói mítico, arquetípico, cuja vida se multiplicou em réplicas, em muitas terras, muitos povos. Um herói lendário é normalmente o fundador de algo, o fundador de uma nova era, de uma nova religião, uma nova cidade, uma nova modalidade de vida.” Para tanto, “ele deve abandonar o velho e partir em busca da ideia semente, a ideia germinal” a fim de fazer brotar o novo.

Trata-se de um impulso mítico, nas palavras do professor Eudoro de Sousa, para quem a síntese da jornada heróica compreende iniciação, metamorfose, catábase (queda), reiterando as palavras de Campbell e colaborando para a compreensão do esquema apresentado por Junito Brandão:

Mas, afinal, quando, onde e como nasce ou surge esse a quem chamamos herói? Nos relatos míticos, os heróis eram, em geral, os filhos de um deus com uma mortal. Para além dos ritos e símbolos a ele associados, além da condição mortal e do traço semidivino, devemos considerar um aspecto fundamental na jornada heróica, que tem início antes mesmo da sua partida. Em diferentes culturas e épocas, na esfera política, religiosa ou guerreira, além da estética, a criação, a formação, a educação – em suma, a paideia – é o fundamento, cujo ideal é o que se entende hoje, em parte, por virtude, em grego, arete, haja vista não ter apenas um cunho moral, mas ser uma “expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro.” (Jaeger: 2003, 25). Essa imagem, ideal na formação do homem e do espírito grego, estende-se ao longo da história; em Homero, tanto designa a excelência humana quanto a superioridade de seres não humanos. Na Odisseia, ganha sentido amplo: a força e a destreza dos guerreiros ou lutadores e, acima de tudo, o heroísmo (idem, p. 27), que não consiste só na força física, mas sobretudo na astúcia de Odisseu, como também na de sua esposa, Penélope.

Jasão e os Argonautas partem em busca do velo de ouro; Orfeu, que tomou parte na expedição, desce ao Hades em busca da amada Eurídice; Perseu sai de casa a fim de trazer como troféu a cabeça da górgona Medusa; Teseu atravessa o labirinto e vence o Minotauro; Eneias, fugindo de Troia incendiada, aporta em várias cidades e, transcorridos sete anos de travessia marítima, funda a mítica Roma. Esses e tantos outros heróis, entre eles, Hércules, o herói por excelência da Hélade, contam com várias mulheres, não menos heroínas, algumas até mais: a feiticeira Medeia, guardiã do velocino; Andrômeda, salva de um dragão pelo valoroso Perseu; Ariadne, a Senhora do Labirinto; Dido, rainha de Cartago, que se mata após ser abandonada por Eneias; Sibila, sacerdotisa de Cumas, que orienta o troiano e desce com ele ao reino de Plutão. Mitos que ainda inspiram artistas ou simples sonhadores, o que nos leva a responder “sim”, ainda há heróis.

Em Batman begins e The Dark Knight, traduzido no Brasil como O cavaleiro das trevas, Christopher Nolan desenvolve, em consonância com as Histórias em Quadrinhos, a mitologia da caverna, a origem e a queda de um herói cuja arete consiste na força física que ele vai buscar à custa de muito treinamento (partida, realização, retorno), a sublimação do desejo de vingança em função da honra e da justiça e sua origem aristocrática, o que remete à própria etimologia da palavra arete. Ele não é um escolhido divino, posto não ser filho de um deus, mas de pais mortais. Ele se autoproclama escolhido face ao drama pessoal (perda dos pais na infância) que o faz reconhecer o drama social de Gottan City. Como símbolo, um velho temor da infância: o morcego. Outrora atacado por ocasião de uma queda e do medo que sentiu, passará a usar esse precedente contra seus inimigos (não poucos), assumindo a sombra e usando como “máscara” seu papel social, sua identidade aristocrática.

Neo (Matrix), Harry Potter, Capitão/Coronel Nascimento (Tropa de Elite / Tropa de Elite 2). Novos e velhos heróis. A busca pelo novo encarnando ou reencarnando antigos mitos, o desejo de saída, transformação. Perigos e provas, risco da queda, danação. Da ficção nas telas ou HQs à fixação das manchetes muitas vezes sensacionalistas, adulteradas que colocam em xeque a condição de mocinho e bandido. Jovens talibãs. Narcotraficantes no Rio, na Colômbia, no Chile, no México. Mulheres de Atenas, mulheres de burka. Quem é o inimigo? Como combatê-lo? Guerra Civil Espanhola, 1ª. e 2ª. Grandes Guerras, Guerra das Malvinas, Irã x Iraque, Índia x Paquistão, Guerra da Bósnia, Guerra do Golfo, Afeganistão, Iraque, Timor Leste, Coreias... E Luanda, e Ruanda, e Angola... A lista segue deixando um rastro de sangue. No campo de batalha, algozes e vítimas. Que ideal os move? Qual a virtude? Algum impulso mítico?

Não é no / do front que se erguem as vozes dissonantes. Em praças públicas, em templos religiosos, em palco arena ou tablado, apelos de homens e mulheres dispostos a dar a vida em prol de um ideal, um sonho, um desejo incontido. Federico Garcia Lorca, Maiakóvski, Mather Luther King, John Lennon, Mahatma Gandhi, Frei Tito, Benazir Bhuto, Ir. Dorothy Stang... E as sobreviventes Ingrid Bittencourt, refém das Farc, Ir. Bernadete Neves, liderança da velha e Nova Jaguaribara, Chiara Lubic, do movimento Folcolares (in memória), além do resistente Pedro Casaldáliga, da Pastoral da Terra.

Seja no cinema, no teatro ou na TV, nas páginas literárias ou jornalísticas, o que nos encanta nesses heróis e heroínas? Por que vamos vê-los e revê-los? Encantamento estético, deleite ante o espetáculo tecnológico, ansiedade, reconhecimento? Essa resposta é de cada um.

Referências bibliográficas:

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Vol. III. Petrópolis: Vozes, 1987.

CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. Tradução: Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Atena, 1990.

JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Tradução: Arthur M. Parreira. – 4ª. ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2001.



[1] ELIADE, Mircea. Op. cit. T. I, Vol. 2, p. 124.

As técnicas cinematográficas de Inception (A Origem)


As técnicas cinematográficas de Inception (A Origem)

Inception, escrito e dirigido por Christopher Nolan (autor de Memento e Batman – Dark Night) com orçamento de 200 milhões de dólares e polêmicas de números ainda maiores, foi a obra mais marcante de 2010 até então. Caracteriza-se basicamente pela junção de ação – já conhecida pelos filmes de James Bond, efeitos especiais refinadíssimos e impactos psíquicos ainda não desvendados.

O roteiro de Christopher Nolan é sem ineditismo algum e cheio de referências como Matrix, Charlie Kaufman, Freud, dentre outros; mas ainda assim não perde seu valor por isso. Muito pelo contrário: é conciso, direto. Digamos que ao ter referências tornou-se fácil o trabalho de aproveitamento, reciclando para o produto apenas as boas idéias. Creio que sem a montagem utilizada, o refinamento estético e a música, este roteiro seria apenas mais um experimento psicanalítico qualquer.

O que nos vem, inevitavelmente, à cabeça ao fim do filme é "que alívio". O conjunto montagem, música – do mestre Hans Zimmer – e ação é arquitetado para tirar o fôlego. As cenas foram meticulosamente sonorizadas, segundo o próprio diretor, com o intuito de alargar ainda mais a emoção das sequências.

Em momento algum a montagem deixou a desejar, cumprindo seu papel lado a lado com a trilha, dando ritmo ao filme. Então, entendam que o respiro de alívio ao final do filme não é negativo, mas sim como um orgasmo, intenso e relaxante, perfeitamente cabível após quase duas horas de suor. Ao nos recordar da sequência final, onde o desafio do editor do filme era organizar os três níveis de realidade corridos em formas temporais diferentes, percebe-se a existência de uma linha tênue entre tornar a sequência desconexa e fazer com que fosse genial.

Não deixemos de lado as questões estéticas e tecnológicas. Nolan gastou rios de dólares pelo prazer do derretimento instantâneo diante da tela, mas não sem motivações. Efeitos mil, de retoques impecáveis, se constroem e se destroem a todo instante diante de nossos olhos: como um mundo de possibilidades, representando fielmente o que vem a ser um sonho. A construção estética pela Direção de Arte e Direção de Fotografia, em alguns momentos surrealistas, cumpre o papel de representar o infinito da mente humana, que é domado a todo o momento pela figura do Arquiteto, responsável por tornar "real" o universo do inconsciente.

Grande parte do trabalho de Direção de Arte ficou a cargo dos Efeitos Especiais, onde podemos encontrar a presença do Chroma Key (http://en.wikipedia.org/wiki/Chroma_key) e de grandes estruturas metálicas usadas para movimentar os cenários. No nível ártico do filme, onde acontece uma guerra no gelo, e onde também seria impossível a construção de cenários, o recurso usado foi a construção de reduções em maquetes que se são filmadas e intercaladas com tomadas feitas em verdadeiras regiões de gelo.

E segurando toda a parafernália tecnológica e toda energia gasta durante o filme, fez-se a necessidade de um caminhão que capta energia solar e fomenta o set de filmagem. Sim, um caminhão. Daí já dá pra ter uma idéia do que significa um set de cinema.

O resultado de tudo isso? Uma das maiores experiências sensoriais da história do cinema hollywoodiano. O que podemos considerar um avanço se comparado com o histórico dos filmes americanos. Inception, assim como outros que vêm surgindo na contramão dos clichês – mas ainda dentro do cinema como indústria e se utilizando disso – tendeu ao hibridismo dos conceitos e se permitiu numa profunda – e cara – experiência cinematográfica.

Publicado em cinema por Mariana Beltrame em 28 ago 2010