segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Dualismo


[Yin Yang]

Não és bom, nem és mau: és triste e humano...
Vives ansiando, em maldições e preces,
Corno se, a arder, no coração tivesses
O tumulto e o clamor de um largo oceano.

Pobre, no bem como no mal, padeces;
E, rolando num vórtice vesano,
Oscilas entre a crença e o desengano,
Entre esperanças e desinteresses.

Capaz de horrores e de ações sublimes,
Não ficas das virtudes satisfeito,
Nem te arrependes, infeliz, dos crimes:

E, no perpétuo ideal que te devora,
Residem juntamente no teu peito
Um demônio que ruge e um deus que chora.

Olavo Bilac

Microcosmo

Pensando e amando, em turbilhões fecundos
És tudo: oceanos, rios e florestas;
Vidas brotando em solidões funestas;
Primaveras de invernos moribundos;

A Terra; e terras de ouro em céus profundos,
Cheias de raças e cidades, estas
Em luto, aquelas em raiar de festas;
Outras almas vibrando em outros mundos;

E outras formas de línguas e de povos;
E as nebulosas, gêneses imensas,
Fervendo em sementeiras de astros novos;

E todo o cosmos em perpétuas flamas...
- Homem! és o universo, porque pensas,
E, pequenino e fraco, és Deus, porque amas!

Olavo Bilac

sábado, 9 de outubro de 2010

Aracne, a tecelã

[Foto Spider, de Skelemy, Deviantart]

Aracne era uma bela moça, filha de um tintureiro de lã, na cidade de Colofon. Sendo filha de quem era, desde cedo acostumara-se a bordar e tecer, revelando um talento inato para essa arte. À medida que Aracne foi tornando-se adulta, sua arte também mais e mais se aperfeiçoava, de tal sorte que logo seus trabalhos eram disputados por todas as mulheres da cidade. Senhoras de outras localidades também acorriam, sem se importar com a distância, desde que pudessem levar para casa algum trabalho saído das mãos da extraordinária artesã.

— Bordado é o da Aracne, o resto é bobagem — diziam as moças, que saíam da casa da talentosa jovem com suas peças estendidas, admirando à luz do sol o tom diversamente colorido dos bordados e das tramas.

De tal forma a fama de Aracne cresceu, que mesmo as ninfas dos rios e lagos próximos deixavam as águas para admirar os trabalhos de Aracne.

Um dia, Artemis, que ficara sabendo do assunto pelas ninfas, levou-o ao conhecimento de Atena.

— Atena, acho que finalmente você encontrou uma rival à altura — disse Artemis, com um tom de ironia.

Ora, deuses e deusas não suportam que lhes falem nesse tom, ainda mais quando um de seus atributos é posto em dúvida. A deusa, considerada a protetora das obreiras e dos artesãos, não admitia que uma reles mortal pudesse sequer emparelhar com as suas obras, respeitadas em todo o Olimpo.

— Quem é mesmo essa fulana? — disse Atena, com a voz repassada de inveja.

— Aracne é o seu nome — disse Artemis, que sob o pretexto de fazer um favor saboreava, na verdade, o despeito da outra.

No mesmo dia Atena decidiu apresentar-se diante da rival e ver se realmente ela era tudo aquilo que afirmavam. Metamorfoseando-se numa velha, a deusa rumou para o país onde vivia Aracne. Quando lá chegou, encontrou a artesã sentada à beira de um regato, cercada por um exército de ninfas, que deitadas sobre a relva admiravam o seu magnífico trabalho.

— Bom-dia, minha jovem! — disse, aproximando-se.

— Bom-dia, minha senhora — disse Aracne, sem desviar os olhos de seu imenso bordado. "Ela é boa artesã, mesmo, a desgraçada!", pensou a velhota e disse:

— Que belo trabalho está fazendo! — exclamou Atena, apoiada a seu bordão, cujo elogio fingido escondia uma secreta admiração.

— É o que todos dizem — falou Aracne, com um ar de presunção que irritou Atena.

— Mas convém agradecer sempre a Atena este dom recebido — disse a velha.

— Ora, e que méritos eu teria se devo exclusivamente a ela meu talento? — disse Aracne. — Ela que cuide de seus bordados que eu cuido dos meus.

Um sussurro de espanto correu por entre as ninfas.

— Oh, não diga isto! — disse a velha, escandalizada. — Não percebe que é uma ingratidão sem tamanho?

— Vovó, por favor, me deixe trabalhar em paz — disse a jovem, pondo um fim na conversa.

— É esta, então, a idéia que tem de mim, atrevida? — disse Atena, desfazendo-se do disfarce e surgindo em todo o seu esplendor diante da tecelã e das ninfas, que recuaram, entre assustadas e reverentes.

Aracne, contudo, não demonstrou grande impressão e prosseguiu a bordar como se nada houvesse acontecido.

— Olhe para mim, sua mal-agradecida! — bradou Atena.

— Estou trabalhando, não está vendo? — disse Aracne, com maus modos.

— Proponho, então, um desafio! — disse Atena, certa de que a vitória seria sua.

— Diga lá! — respondeu a moça, que não queria outra coisa senão medir-se com a própria deusa dos trabalhos manuais.

— Vamos, ninfas ociosas, tragam toda lã que puderem encontrar e a depositem aqui, em partes iguais, a nossos pés — ordenou Atena.

As duas mostravam-se extremamente arrogantes. Não se podia saber qual seria a vencedora daquele empolgante confronto. Ao sinal da deusa, as duas começaram a trabalhar. Os dedos ágeis desfiavam a lã e a colocavam rapidamente sob os pentes do tear que tinham à frente.

Os fios deslizavam, esticados ao máximo, parecendo as cordas afinadas de um piano. Nem bem saíam da máquina e dedos os capturavam, comprimindo-os sob as agulhas douradas.

Cada qual tinha aos joelhos uma grande tela, na qual deveriam bordar um grande tapete figurativo. Atena escolhera fazer o retrato de uma disputa que tivera com Posídon, enquanto Aracne bordava magistralmente a cena do rapto de Europa por Zeus.

Aos poucos as figuras ganhavam forma nas armações quadradas que cada qual tinha diante de si. Os fios de diversas cores passavam pelos dedos das mulheres como os fios que tecem o arco-íris, misturando-se numa mesma maçaroca, mas saindo separados e uniformes sobre a tela.

— Veja, a tela de Atena está mais bela — dizia uma ninfa, observando o trabalho da deusa, que começava a ganhar forma diante dos olhos de todas.

De fato, o mar, os peixes, o deus Posídon com seu tridente, tudo parecia adquirir vida própria, enquanto os dedos finos da deusa tramavam agilmente as linhas de diversas cores.

— Não, o de Aracne é mais belo — disse outra ninfa, abaixando o tom de voz para não ofender a deusa.

O tapete de Aracne, com efeito, não ficava a dever nada ao da sua rival em matéria de cor, beleza e vivacidade. Todas podiam ver aos poucos o alvo touro que raptara Europa ganhar forma sob as costuras. O alvo fio ia desenhando o contorno da bela jovem com tal perfeição que ela parecia estar viva e prestes a sair do tapete: seus pés erguiam-se a poucos centímetros da água de um anil perfeito, por sobre a qual era levada pelo animal.

À medida que as duas finalizavam o trabalho, a ansiedade e a expectativa das ninfas tornavam-se quase insuportáveis.

De repente, Atena pôs-se em pé, com um grito de triunfo:

— Pronto, amadora, apresente também o seu trabalho!

Aracne, dando o último nó em seu bordado, ergueu-o desafiadoramente.

— Que as ninfas julguem com imparcialidade! — disse, encarando a rival. Atena, arrebatando o tapete das mãos de Aracne, comeu-o com os olhos.

Enquanto o estudava, procurava com ele ocultar o próprio rosto, a fim de que as demais não vissem a admiração estampada na sua face. "Maldita! Seu trabalho tenho de reconhecer, é levemente superior ao meu!", pensou a deusa.

Temendo, porém, que as julgadoras chegassem à mesma conclusão, Atena perdeu a cabeça e fez em pedaços o belo tapete, mostrando que não admitiria sofrer uma humilhação.

— Oh, como você é cruel e injusta! — disse Aracne, tomada pela ira. Em seguida, rasgou também o trabalho da rival, sapateando em cima.

— Veja o que restou de seu horrível bordado — disse, arreganhando os dentes para a deusa.

Isto foi demais para a paciência de Atena, que não podia admitir tamanha afronta de uma reles mortal. Erguendo sua mão sobre a cabeça de Aracne, rogou-lhe uma praga terrível. A moça, que ainda estava sob o efeito da cólera, não sentiu a princípio que seu corpo encolhia até transformar-se numa bola negra. Depois, de seus flancos saíram várias pernas cabeludas, o que encheu de horror as ninfas, que se lançaram à água, temerosas de que a deusa resolvesse puni-las também.

Tomando em suas mãos a asquerosa criatura, Atena pendurou-a em um galho.

— Veja, aí está o prêmio da sua arrogância! — disse a deusa, com uma risada de escárnio.

Já ia dando as costas para se retirar, quando percebeu um ruído vindo da árvore. Voltouse e viu que a criatura negra movimentava suas pernas com extraordinária agilidade, costurando um manto com uma seda extremamente fina que retirava de seu dorso abaulado. Aos poucos Atena viu surgir diante de seus olhos um magnífico bordado circular, que excedia a tudo que ela antes já fizera, como se Aracne, mesmo sob aquela odiosa forma, tivesse se tornado ainda mais talentosa com seus diversos braços.

Atena, reconhecendo-se finalmente derrotada, partiu correndo do maldito bosque.


Mitos de Metamorfose

[Foto Spider Web 3, de Josgoh]

Amigos e amigas internautas, fiéis discípulos e discípulas do Curso de Mitologia, amigos e amigas do Grupo Paideia.
Em nosso último encontro, passeamos pelo universo de Ovídio através de alguns dos muitos mitos de metamorfose. Uma viagem não só encantadora, mas necessária que faz parte da jornada heroica de cada um. Seja qual for a transformação, ela nos des-vela e re-vela o que há de melhor e pior em nós, o que vale tanto para deuses quanto humanos, ou melhor, o que é mais humano e divino em nós. Não deixem de ler essa obra fantástica - As metamorfoses - de Ovídio e descobrir outros mitos e histórias que tratam do mesmo tema em farta literatura antiga e contemporânea, como A metamorfose de Kafka.
Taí a dica.
Ótimo feriado pra todos.
Um forte abraço e até próximo sábado com mitos e lendas heroicas.
Luciana Sousa

sábado, 2 de outubro de 2010

Fortaleza - Moscou

[Foto Moscow, de Daphotos]

Sonata de Brahms. A eternidade e o efêmero. A sobriedade da pianista e o ímpeto do violino. O menino e a donzela.
Nesse instante de puro deleite, um acorde de alguém que dorme: sim, para perturbação dos presentes, um indivíduo emite sua incômoda percussão, em alto e (nada) bom som. Recostado no espaldar, cotovelo,mão e queixo pendidos; sem dar-se conta alcança a profundidade do sono e o indesejável sonido. A donzela à sua frente puxa-o pela perna da calça, temendo que aquele repertório particular e inusitado repercuta no palco, para desconcerto geral. Mas...
Eis que um acorde agudíssimo desperta nosso Adamastor. Desconcertado diante dos que lhe miram, pigarreia a baba que estava por escorrer, endireita-se na cadeira. Todavia, a música é tão suave... que, mais uma vez, embala o sonolento titã. Novas percussões. Mais brandas dessa vez.
Segue a sonata. A música evoca eras remotas, aproxima distâncias. Nem mesmo o imprevisto estranhamento sonoro põe fim à magia daquele momento. Ao lado da donzela dos trópicos, um menino dos Montes Urais. Sem partilharem o mesmo código linguístico, não precisam falar para comunicarem-se: olham-se e sorriem.
Último acorde. Cessa o bramido. Aplausos.

27 de julho de 2003

Pezinhos frenéticos

[Foto Safe your foot, de Aqbarsic]

Domingo. Em Fortaleza, um sol de rachar! Acontece o ENADE (Exame Nacional do Desempenho Estudantil), que avalia a qualidade do ensino superior no país. A cena se dá numa sala de aula de uma grande escola da cidade.

Há poucas pessoas na sala de número 202. Talvez cinco ou seis. Um candidato sentado à frente está assaz inquieto. Depois do ruge-ruge do pacote de recheado, é a vez das sandálias de borracha, que insistentemente ditam um novo compasso que, para a ocasião, soa um tanto perturbador. Uma das fiscais percebe o incômodo dos demais e resolve intervir, mas fica sem jeito, teme constrager o candidato que, sendo aluno de Direito, pode se achar no direito de incomodar todo mundo.
Lê, escreve, come, bebe e, no compasso, pezinhos frenéticos.
Sem cerimônia, uma candidata, possível e certamente amiga do outro lá, irrompe:
-Joaquim, Joaquim! Pára com isso!
E, dessa vez fitando a fiscal, Joaquim suspende o compasso das sandálias de borracha, seguindo o ritmo dos seus pezinhos frenéticos descalços...

Hai-Kai Onírico II

[Foto The Cat, de Sunilk]

Em fuga, um grito
Socorro imediato
Um gato em sacrifício

Luci-Chan

Hai-Kai Onírico

[Foto Scorpion, by Zaclab]

Na sombra surgiu
Com ágil ferrão
Da cor do deserto

Luci-Chan


Je suis desolé!


[Foto Lord Morpheus, de Washington Forte]

Je suis desolé!
Minha gatinha não é mais minha gatinha. Ela agora é ele.Coraline virou Morpheus.
Tudo aconteceu depois de uma queda de um pé de pau de quase 3m na vila onde moro. O bicho, até então bichinha, subiu e não conseguiu descer, de modo que ficou aos miaus mais feios do mundo. Lá vou eu subir num banco, pegar um rodo e pelejar para fazer o resgate. O sangue subiu à cabeça, a raiva cegou e, em vez de puxar, empurrei. A criatura caiu e machucou a patinha. Quase morri de chorar.
Hoje, depois de o veterinário prestar os primeiros-socorros, veio a revelação:
- Doutor, ela vai ficar bem?
- Ela? Não. Ele vai.
Meu mundo caiu.

Zen doida!

[Foto YoGa, de Dig Pho Art]

Aula de Yoga. Sesc da Clarindo, 18h. De um lado a Duque de Caxias, do outro o Mercado São Sebastião. Perfeito. Relaxamento inicial com um bando de mulher chegando atrasadas. Finalmente a aula.

Depois de uma série de surya, posturas de força da Hathayoga, novo relaxamento, dessa vez, pra valer.

"Fique numa posição confortável. Agora solte a cabeça, relaxe os músculos da face (cadê os olhos obedecerem! Pareciam querer sair do globo ocular!), respire suave e profundamente. Relaxe o maxilar e deixe a língua solta..."

Mininu, num é que fiz o que a professora pediu: esqueci os olhos, pois continuavam inquietos, mas o resto relaxei geral. Eu relaxei tanto que liberei morfina: a língua ficou dormente. Cadê eu conseguir falar depois da aula! Soltei a língua, mas esta acabou ficando "plesa".

Na saída, pedindo a Deus que ninguém falasse comigo, despedi-me do povo qual uma lady: um sorriso e um aceno. Então saí bem zen, zen doida.

Beijos, meu caro.

Até uma próxima.

Lu

Hora do Ângelus

[Foto Twilight of the Gods, de Muad Nait]

Salve, caríssimos.

O ócio é osso. Por isso, resolvi compartilhar com vocês, neste momento precioso do almoço já comido, um que foi duro de roer.

Hora do Ângelus. Em vez de ave-maria, catraca. Pra lá, pra cá, ad infinitum... A sinfonia do trânsito também ajuda, afinal é hora de relaxar.

Bem, amigos e amigas, é mais um dos meus fragmentos prosaicos por ocasião de mais uma aula de ioga no Sesc.

Cada vez mais, tenho percebido o quanto a ioga é sinetésica. Primeiro foi a língua dormente; depois, a dor de cabeça, a agonia nos ouvidos, e agora um singular incômodo olfativo. Não bastasse o aroma do São Sebastião, o do vizinho era algo assim... impregnante. E desagradável.

O nariz começou a coçar. Tive de redobrar a concentração a fim de evitar o quase inevitável espirro. Quando finalmente começou a série de asanas, as posturas da ioga, pude anestesiar a gastura.


Hora da Meditação. Pensei: “Não podíamos pular essa parte só por hoje?” Passou o efeito anestésico, e o desodorante vencido ou a falta dele por parte do meu vizinho voltou a impregnar. Coceira, gastura, impaciência. A vontade de sair correndo era imensa. Mas resisti. Só quase gritei quando a professora disse:

- Respire profundamente...

Cá comigo, respondi, quase desmaiando: “Não dá!!!”

A negada pensa que é piada, mas é verdade. Queria ver se fosse com vocês.

Beijo

Lu